terça-feira, 18 de maio de 2010

Estrela do Mar

Tinha feito a viagem na sua luminosidade preferida, acompanhada pela banda sonora perfeita e com a imagem do pôr-do-sol ao fundo, por cima do mar revolto, a quem recorria quando se sentia especialmente frágil. A visão do mar, poderoso e estrondoso, conferia-lhe a força e a segurança que sempre precisava, mas que nunca denunciava. A música das palavras que lhe tocavam a alma e a luz discreta e profunda que lhe afectava o olhar, alimentavam a vontade de chegar ao outro lado da sua vida. O lado só recentemente acordado, mas sempre sonhado; o lado comandado pelo Mar. A força que a conduz ao outro lado de si é como o mar; com som, cheiro, sabor, toque e um movimento que a invade e a embala, que a embriaga e a ultrapassa, que a vence e assusta terrivelmente. Admirável, perigoso e distante; invasivo e arrebatador, é o medo que lhe alimenta a viagem, que a conduz ao outro lado de si, que é eu, mas também é outro.

Chegou mesmo antes de anoitecer. Ainda teve tempo de abrir as portadas da janela e deixar entrar um resto de luz e aragem diurna, antes de acender as velas e os incensos que a faziam sentir-se em casa. Pôs uma roupa confortável e encheu a casa vazia com a sua música. Sentou-se no sofá da sua infância (tão confortável apesar dos anos) e abriu o livro que esperava acalmar-lhe a doce ansiedade. E nesse momento a consciência da sua infelicidade caiu sobre os seus ombros como um pedregulho, o pedregulho de Sísifo… Tomou consciência do absurdo da sua existência, da sua profunda solidão, da inefável necessidade de partilhar e da impossibilidade perpétua de o fazer. A sua dupla vida, a sua dupla identidade, os seus desejos contraditórios, os seus pensamentos e as suas acções, os seus valores, objectivos… onde estão? Quais são? Ainda não fez nada do que ambicionava fazer, mantinha a sua vida e a sua energia à vontade dos outros ou do outro que a absorvia desde a mais tenra adolescência, a quem se limitava a alimentar o narcisismo patológico, que se tornou na sua própria patologia, já que era seu o sofrimento. O que é que queria? Queria ser feliz e para isso tinha que ser livre; livre nas acções e não apenas no pensamento. E não podia estar mais longe disso.

A paixão que a trouxe à casa da sua infância onde esperava encontrar-se com o seu outro lado, o lado do Mar, tinha-a distraído da prisão em que vivia há mais de 15 anos, da dependência em que se tornara a promessa de felicidade e da doença, que também já era sua, que a impedia de assumir os seus desejos, a sua existência e a sua essência anulada pelo egoísmo e pelo menosprezo de quem tinha prometido ser o pai dos seus filhos, dos filhos que nunca chegaram a existir … E chorou as lágrimas escondidas e esquecidas todos estes anos, soluçou a sua fragilidade e cobardia. Lembrou com todo o pormenor todas as vezes que foi desrespeitada e desprezada, que deixou de ser quem quer ser que não foi tratada como merecia… chorou, chorou, chorou… Pensou porque havia de contentar-se apenas com algumas horas de felicidade, depois de fugir e desculpar-se com a ansiedade de ser “apanhada”; porque não haveria de respeitar o que sentia, a força que a atraia?